sexta-feira, 11 de setembro de 2009

COISIFICAÇÃO DA PALAVRA: ERRAMOS TODOS NÓS? OU SOBRE O DITO E O NÃO DITO

Francisco Carlos de Mattos¹

A Inquisição foi criada na Idade Média (século XIII) e era dirigida pela Igreja Católica Romana. Ela era composta por tribunais que julgavam todos aqueles considerados uma ameaça às doutrinas (conjunto de leis) desta instituição. Todos os suspeitos eram perseguidos e julgados, e aqueles que eram condenados, cumpriam as penas que podiam variar desde prisão temporária ou perpétua até a morte na fogueira, onde os condenados eram queimados vivos em plena praça pública. ²

“Onde não há texto, também não há objeto de estudo e de pensamento”. Bakhtin (1992: 329), com essas palavras, delineia um espaço interessante de análise e reflexão sobre as coisas ditas e as não-ditas. As primeiras permitem uma resposta imediata de concordância ou não e incitam para o debate, para a discussão no campo das idéias. As outras, veladas, implícitas em posturas, atitudes, gestos, mexem com a subjetividade e não admitem réplica. São atitudes que falseiam a real intenção de quem as produz, pois na contestação do outro, do ofendido por tais não-palavras, o ofensor se faz de vítima e incorpora o dito subjetivamente pelo não-dito enquanto negação de ter feito. Essas são atitudes de quem se preocupa em não deixar provas, rastros que comunguem contra o seu feito, abrindo espaço para, mais uma vez, fazer valer a instância do subjetivo, do que pertence ao pensamento humano, em oposição ao mundo físico, ao factual, ao visível.
Em alguns momentos e contextos o silêncio `fala`mais que mil palavras e mil palavras não dizem nada em função da sua consistência. Muitas vezes de onde menos se espera a palavra marca mais que chicotada ou vara de marmelo, que enverga, mas não quebra. Conotativamente o dito ou até mesmo o não-dito conseguem encurvar pessoas. A veracidade de tal assertiva se dá quando se consegue acionar o poder de convencimento. Ainda Bakhtin (1992: 333) é quem corrobora com esta linha de pensamento, quando afirma que “o texto não é um objeto, sendo por esta razão impossível eliminar ou neutralizar nele a segunda consciência, a consciência de quem toma conhecimentos dele”. Cientes do poder das palavras, algumas pessoas astutas se valem disso para tirar proveitos pessoais correndo o sério risco de serem incursas em famoso artigo do Código Penal. O mundo está repleto desses velhacos.
Algumas pessoas, ingenuamente, acreditam que aqueles que convivem num lugar específico, numa determinada instituição trazem em si a concepção do sujeito que pensa como os demais, numa perspectiva da mesmice, numa linha de produção de pessoas que pensam, cartesianamente, da mesma forma. caracterizado por Hall (2006) como aquele que se enquadra ou foi enquadrado em um determinado sistema, o que, autonomamente, se deixa levar numa só direção. Século após século, até o atual, este é o paradigma do bom aluno. Este autor em seus estudos sobre ´A identidade cultural na pós-modernidade` denuncia que “esta concepção do sujeito racional, pensante e consciente, situado no centro do conhecimento, tem sido conhecida como `o sujeito cartesiano´ (p. 27). Nessa reflexão, a escola continua inserida num contexto caracterizado por Althusser (1998) como Aparelho Ideológico do Estado. É ela uma das maiores, senão a maior, construtora de marionetes, que vêem o estado como o grande pai ou que se integram aos elementos que aceitam as ações dos governos como, numa visão gramsciana, verdadeiras paternalizações, através de beneficências, das doações de todos os tipos de vales (gás, leite etc.). Para o alimento do espírito, o Pai Todo Poderoso, que nos nutre com as suas bênçãos e para a matéria, o “pai”, também poderoso³, que nos abastece com esses programinhas sem-vergonhas, que se transformam em verdadeiras rédeas eleitoreiras. Se caso encontremos alguma “ovelha desgarrada” que pense diferente, negando tal mecanismo de reprodução, é necessário encerrá-la no lugar mais tenebroso de uma masmorra.
A escola se contradiz quando, por exemplo, abraçando um viés democrático, sugere a toda a comunidade escolar que busque desenvolver nos alunos as suas criticidades; entretanto, quando aparece algum que demonstre ter aprendido bem a lição, alguns professores não sabem como lidar com esse tipo de aluno.
Alguns indivíduos da comunidade escolar acreditam e esperam que o aluno vá construir sua capacidade crítica, para desenvolvê-la fora da escola, que a use para analisar prós e contras da sociedade, sem perceber que a escola é um dos apêndices da mesma e que, por isso mesmo, será, também, criticada. Na verdade, percebe-se que a instituição alimenta um filete de esperança de que as palavras constitutivas de um discurso modelado por ela sejam proferidas por todos os alunos. A escola seleciona o discurso e os repassa aos estudantes e os vocábulos têm que ser repetidos sem tirar nem por uma vírgula que seja. Nesse caso, mais uma vez Bakhtin (1992: 350) se faz referência, quando afirma que “se nada esperamos da palavra, se sabemos de antemão tudo quanto ela pode dizer, esta se separa do diálogo e se coisifica”.
A criticidade das pessoas é demonstrada quando, ao concatenar os conhecimentos construídos e confrontá-los com os contextos vividos, analisando-os, interpretando-os e objetivando-os em textos, conseguem transformá-los em instrumentos de persuasão. O outro ou a segunda consciência que não consegue replicar diante da força do argumento – muitas vezes usa o argumento da força -, se vê convencido e adere ao pensamento do enunciador ou, discordando, recua estrategicamente, para reabastecer-se de fundamentação, de palavras que façam frente às do seu interlocutor. Belo exercício de contradições. Os filósofos da Grécia antiga faziam isso muito bem. Dobravam os seus opositores com belos discursos.

A sentença: “O que somos é o que fizemos do que fizeram de nós”.

_ Trato as pessoas da mesma forma como elas me tratam. – Assim se colocou a aluna, quando acusada de ser malcriada, respondona e de ter atitudes inadequadas.
Quando o conselho de classe extraordinário, constituído pela direção, orientação educacional, inspeção de ensino e professores da turma, convocou a aluna, esta ao entrar na sala onde se daria a reunião, não se portou como o incriminado da época da Inquisição; mas, demonstrou em alguns momentos, que acreditava que a escola iria acionar o dispositivo legal maior contra ela. Diante da leitura dos vários registros desde o final de 2007, ela não negou nenhum.
A aluna foi avaliada pelos professores presentes, como criativa e, de alguma maneira, comprometida com os seus estudos. Quanto aos problemas de ordem comportamental, entendeu-se que os mesmos não foram gerados e nem incentivados neste colégio; mas, são produtos de uma concepção errônea de mundo e de uma preparação profundamente equivocada para a vida.
Ser crítico também passa pela posição de se respeitar a opinião do outro e aceitar as diversidades em todos os campos. A contradição deve ser uma categoria que provoque a discussão, o debate e, como dito acima, a força do argumento e não o argumento da força. Evidente que essa atitude é esperada de pessoas mais centradas, mais experientes e não o contrário. Do jovem, em geral, se espera a impetuosidade do imediatismo, os reflexos do sangue quente, do ´pavio curto`, o ganhar no grito. O que se espera do professor? Aqui também podemos alinhavar o pensamento numa linha gramsciana, quando aludimos que só podemos ser intransigentes na ação se tivermos sido tolerantes na discussão, se os que estavam mais bem preparados tiverem ajudado os menos preparados a compreender a verdade, com a preocupação de não fazê-lo de uma forma dogmática e absoluta, como algo já maduro e perfeito.
Seria justo uma instituição que prega a democracia e a criticidade transferir para outro lugar o que entende como um problema? Não é cômodo demais remover para outra escola uma questão sem esgotar as possibilidades de resolução da mesma?
Nem tudo é o que quer aparentar ser. Numa adaptação livre, podemos reforçar com Foucault (1992: 25) que

por mais que se diga o que se vê, o que se vê não se aloja jamais no que se diz, e por mais que se faça ver o que se está dizendo por imagens, metáforas, comparações, o lugar onde estas resplandecem não é aquele que os olhos descortinam.

Negar o instituído, burlar regras e, caetanamente, proibir o proibido são atitudes anarquistas desenvolvidas pela verve juvenil, que não se preocupa com os aspectos teóricos que fundamentam essa doutrina filosófica. Simplesmente a desenvolvem. É próprio do adolescente.
É necessário e imprescindível que, em geral, os jovens saibam lidar com as palavras de tal maneira que elas não se coisifiquem, percam o sentido. Neste caso, é imperioso que entendam, que não são as palavras que magoam, mas como elas são ditas, proferidas ou seja, o que importa não é o conteúdo, mas a forma.
A escola, sensatamente, prefere investir naquilo que lhe é peculiar e que tanto a sociedade espera dela: educar.
Confesso que eu, assim como a maioria que compunha o conselho, não esperava outra atitude.
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¹. Orientador Educacional da Rede Pública Municipal de Cabo Frio, atualmente no Colégio Municipal Rui Barbosa.
². Disponível em: http://www.suapesquisa.com/historia/inquisicao/ . Acesso e captura em 23 de setembro de 2008.
³. Essa idéia também encontra-se em Gramsci (s/d: 153), quando afirma que
“(...) reflete-se em pequena escala o que ocorria em escala nacional, quando o Estado era concebido como algo abstraído da coletividade dos cidadãos, como um pai eterno que tinha pensado em tudo, providenciado tudo (...)

Referências Bibliográficas
ALTHUSSER, L. P. Aparelhos Ideológicos de Estado. 7ª ed. Rio de Janeiro: Graal, 1998.
BAKHTIN, Mikhail. Estética da criação verbal; [tradução feita a partir do francês por Maria Ermantina Galvão Gomes Pereira; revisão da tradução Marina Appenzeller]. – São Paulo: Martins Fontes, 1992. – (Coleção ensino superior).
FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas: uma arqueologia das ciências humanas; [tradução de Salma Tannus Muchail]. 6ª ed, - São Paulo: Martins Fontes, 1992.
GRAMSCI, Antonio. Os intelectuais e a organização da cultura. São Paulo: Círculo do livro S.A., s/d.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade; [tradução Tomás Tadeu da Silva e Guaracira Lopes Louro]. 11. ed. – Rio de Janeiro: DP&A, 2006.

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